O espetáculo “Festa na Cidade” da
Companhia Experimental de Dança Waldete Brito é uma criação sui generis. Tem essa qualidade por se
debruçar sobre um universo de dança distante do meio acadêmico, embora a academia
o ambiente pelo qual transitaram ou transitam muitos de seus componentes. O
espetáculo apresenta o mundo das festas de brega de Belém: a pulsação dançante
dos bailes de aparelhagem, que têm uma longa história nos bairros da periferia
da cidade. Nestes espaços e eventos, a dança se aprende e se recria de forma
livre e balizada pelos valores e formas de convivência conhecidas pelo público
frequentador.
O que o espetáculo apresenta, no
entanto, é muito mais que uma reprodução desse universo. Trata-se de uma inovação,
em que a matéria-prima das interações entre dançarinos nas festas bregueiras de
Belém é recriada numa nova perspectiva. O voo da inventividade artística
ultrapassa em muito a fonte de consulta para seu roteiro, que foi o livro
homônimo ao espetáculo. A obra “Festa na Cidade”, de minha autoria, é um estudo
etnográfico sobre o universo do circuito de festas de brega, de aparelhagens e
de apresentações musicais ao vivo, em que se movimenta pela cidade um público
cativo apreciador de brega pop, tecnobrega, tecnomelody e músicas da saudade.
O roteiro do espetáculo de dança
“Festa na Cidade” vai muito além do realismo do texto etnográfico de onde tomou
inspiração. A apresentação recria a dinâmica da festa confundida com o
cotidiano dos dançarinos, dentro e fora do salão. O espetáculo se inicia com os
DJ na “nave” da aparelhagem mandando abraços para o público. Em seguida, casais
como os de bailes da saudade começam a dançar de forma quase solene. Esta dose
de formalidade é rapidamente deixada para trás por momentos cada vez mais
vibrantes em que é simulada a efervescência, o paroxismo da festa. Ao mesmo
tempo, a movimentação dos dançarinos, sua expressão corporal explora novas
dimensões dos conhecidos passos, rebolados e “caquiados” das danças no salão de
festa. A dança torna-se metáfora das relações interpessoais, dos gostos, dos
desencontros, dos anseios e mesmo do desvario dos que vivem as festas. Música, dança
e corpo compõem um todo que põe em sintonia os artistas e o público, que certamente
ali identifica a realidade destas festas tão comuns em nossa cidade. Só que
neste caso, esta realidade é vista por outro ângulo: o cenário familiar para
muitos é uma fabricação espetacular, que de todo modo, é olhada de fora.
As apresentações musicais não seguem
o percurso histórico linear do surgimento histórico das vertentes do brega
paraense. Ao invés disso, as apresentações alternam tipos de dança e hits de diferentes fases de sucesso do
brega do Pará. Isto garante ao espetáculo uma reserva importante de imprevisibilidade
e de liberdade criativa. É o caso da surpresa final, com a entrada em cena da
cantora Iva Rothe, que apresenta à capela o hit
inaugural do brega paraense dos anos 1980: “Ao pôr do sol”. Rothe acompanha seu
par na dança final ao mesmo tempo em que pontua o encerramento da apresentação.
O espetáculo que começou com som de aparelhagem e numerosos casais de
dançarinos se conclui com um par solitário, de fim de festa, ao som de voz sem
acompanhamento instrumental.
O espetáculo-síntese da cultura
festiva bregueira paraense é um deleite para os olhos e para os amantes da
dança, venha de onde ela vier: dos salões eruditos, dos palcos de teatros ou
das pistas das casas de festa da periferia.
Maurício Costa
Belém, 20/02/2013
*Maurício Costa é Dr. em Antropologia pela USP, professor da Universidade Federal do Pará e autor do livro Festa na Cidade: o circuito bregueiro em Belém do Pará (Editora da UEPA, 2009).
Foto: Mauro Ângelo